sábado, 18 de outubro de 2008

"Tudo o que é sólido se desmancha no ar."
K. Marx



Resumo: O presente trabalho é exposição analítica sobre o texto de Marx, “Salário, preço e lucro’’, que se encontra na coleção “Os Pensadores”.
A realização da exposição dos argumentos, por ser analítica, seguirá o que BLOOM (1971:121) propõe como análise de obra, qual seja: Identificação e classificação dos elementos; explicitação das relações entre tais elementos e reconhecimento dos princípios de organização.

Introdução.
O analisado texto de Marx se divide da seguinte forma:
*Oferta e procura;
*Salários e preços;
*Valor e trabalho;
*Força de Trabalho;
*A produção da mais-valia;
*O valor do trabalho;
*As diversas partes em que se divide a mais-valia;
*A relação geral entre salários, lucros e preços;
*Casos principais de luta pelo aumento de salários ou contra sua redução;
*A luta entre o capital e o trabalho e seus resultados;
Notas.
A respeito das 34 notas apresentadas ao longo do texto, não consta ser nenhum feita pelo próprio Marx, sendo, pois, notas do editor e do tradutor.
Conceitos.
Os conceitos mais apresentados, e mais significantes no entendimento da obra, são os seguintes:
*Trabalho;
*Mercadoria
*Mais-valia;
*Oferta e procura;
*Preço;
*Valor;
*Salários;
*Lucro.


“Salário, Preço e Lucro” : Análise dos argumentos.
Ao adentrar o capítulo intitulado “Oferta e Procura” temos no primeiro parágrafo a afirmação feita por Weston de que “a redução dos meios de pagamento resultante de um aumento dos salários, determinaria uma diminuição do capital” (p.70).
Marx faz objeções ao argumento de Weston, as quais serão dispostas em várias partes do texto, a fim não só de elucidar os problemas, como também de contra-argumentar o que afirmar o “cidadão Weston”.
Ainda neste capítulo temos, no segundo parágrafo, o levantamento de um problema sobre a questão do salário baixo e alto, expressão esta que só faz sentido mediante uma comparação, e para tanto o exemplo dado é o de um termômetro, por este apresentar variações, ora estando o mercúrio baixo, ora alto.
Seguindo na leitura vemos o conceito da oferta e da procura , importante para o entendimento do que se discuti na obra, mas que por enquanto será apenas citado, seguindo de uma ponderação dada no próprio texto


“[...] poderá dizer-me por que se paga uma determinada soma de dinheiro por uma determinada quantidade de trabalho. Se me contestasse que isto ocorre por conta da lei da oferta e da procura, eu lhe pediria, antes de mais nada, que me dissesse qual a lei que, por sua vez, regula a da oferta e da procura” (p.70)


A abertura do capítulo “Salários e preços” reduz a uma expressão teórica a afirmação de Weston, que se traduz num dogma “Os preções das mercadorias são determinados ou regulados pelos salários” (p.71).
Marx demonstra que esta afirmativa de Weston equivale à outra, a de que “o valor das mercadorias é determinado pelo valor do trabalho”. Esta afirmação, ou dogma, como fora expresso acima, não responde a questão de como se determina o valor do trabalho, e se responde é mero círculo vicioso, como aponta o filósofo - em outras palavras, uma falácia do tipo petitio pincipii , pois equivale dizer “o valor se determina pelo valor” (p.73).
O capítulo é encerrado dando crédito a Adam Smith, por este ter rechaçado a falácia “os salários determinarem os preços”.
Dito isso, a questão da mercadoria começa a ser aprofundada. Segue a argumentação de que as mercadorias assumem o caráter de troca.
Ora, falar de valor de uso é o mesmo que conceber um trabalho concreto, ou seja, “eu produzo para o meu próprio consumo”. Entretanto, ao adentrarmos o cerne da questão da troca, já não mais é dito trabalho concreto, e sim abstrato.
Marx parte a procura de entender qual seria o valor da mercadoria, e como se daria este valor, de tal modo a possibilitar a troca de uma mercadoria por outra.
Para esclarecer o alvo da discussão basta o exemplo: De um quilo de batata sendo trocado por dois de açúcar.
Um passo na resolução do impasse é dado no quinto parágrafo do sexto capítulo, onde encontramos a explanação de que “cada um destes dois objetos [no exemplo dado a batata e o açúcar] deve poder reduzir-se, independentemente um do outro, àquela terceira coisa, que é medida de ambos [terceira coisa: não é nem batata, nem açúcar]” (p.74)
A questão reside, ainda, no problema da troca, que mesmo apresentando como resposta a questão da ‘’terceira coisa’’, é necessário que entendamos que a troca das mercadorias não passam de funções sociais, e nada têm a ver com suas propriedades naturais, devemos antes de mais nada perguntar: Qual é a substância social comum a todas as mercadorias? A resposta será o : trabalho (grifo nosso).
Em outras palavras, o trabalho social é a substância comum a todas as mercadorias, já que para produzir uma mercadoria tem-se que incorporar a ela uma determinada quantidade de trabalho. Nesse aspecto, o que distingue uma mercadoria de outra não é senão a quantidade de trabalho, maior ou menor, nelas cristalizado; quantidade de trabalho que se mede pelo tempo que dura o trabalho. "Portanto - dizia Marx - os valores relativos das mercadorias se determinam pelas correspondentes quantidades ou somas de trabalho investidas, realizadas, plasmadas nelas".
No décimo parágrafo do sexto capítulo [Valor e Trabalho], citando um ensaio de Benjamim Franklin temos o desenvolvimento de outro argumento, que será fortemente sustentando por uma frase, da página seguinte [76]. O argumento versa sobre a diferença entre preço e valor, para tanto o próprio Marx afirma:


“A determinação dos valores das mercadorias pelas quantidades relativas de trabalho nelas plasmado difere, como se vê, radicalmente, do método tautológico da determinação dos valores das mercadorias pelo valor do trabalho, ou seja, pelos salários” (p.76)


Com isso, deve-se verificar o valor que esta mercadoria tem, dentro de um contexto social, e isso pode não ter elação com o preço que ela terá no mercado, pois este é regido, dentro do capitalismo, pelas flutuações proporcionadas pela lei da oferta e da procura.
Nas duas seguintes páginas [77-8] Marx abordará a idéia do tempo com relação ao trabalho, para tanto um exemplo seria de eficácia para explicar o que se explana nesta referidas páginas.
Suposto que um tecelão demorava 8 horas para a produção de um metro de tecido.
Com a chegada da fábrica, a mesma produzia um metro de tecido em apenas uma hora.
Logo, sua mercadoria era mais barata, levando os tecelões a falência, e estes, por sua vez, virariam mão de obra barata nas indústrias, dando mais lucro ao capitalista.
Fiquemos com a clara afirmação: “Os valores das mercadorias estão na razão direta do tempo de trabalho invertido em sua produção e na razão inversa das forças produtivas de trabalho” (p78)
Nesse ponto o raciocínio de Marx deparava-se com a seguinte questão: de onde provinha mesmo o lucro? Se uma mercadoria é vendida pelo seu valor, a força de trabalho, que é uma mercadoria, também é vendida pelo seu valor . E esse valor é determinado, como vimos, pelo tempo de trabalho necessário para produzir a mercadoria. Então o valor da força de trabalho é determinado pelo tempo necessário à sua conservação e reprodução, ou seja, "pelo valor dos artigos de primeira necessidade exigidos para produzir, desenvolver, manter e perpetuar a força de trabalho.” Aparentemente, toda a força de trabalho que o operário despendeu é remunerada pelo patrão ao final de uma semana, por exemplo. Mas essa é uma aparência enganadora, pois o capitalista, ao comprar a mercadoria força de trabalho, passa a ter direito de servir-se dela fazendo-a funcionar durante todo o dia, sucessivamente. E aqui é preciso entender que o valor da força de trabalho é completamente distinto de seu funcionamento.
Nas páginas que seguem, ou seja, da página 80 até metade da página 94, Marx tratará da força de trabalho enquanto mercadoria, como também da mais-valia e da parte não remunerada da mercadoria. Entretanto, é necessário entender que o papel do filósofo, ao apresentar todos os aspectos abordados até aqui foi para entender de onde provem este lucro dentro da sociedade capitalista.


“O valor da força de trabalho se determina pela quantidade de trabalho necessário para a sua conservação, ou reprodução, mas o uso desta força só é limitado pela energia vital e a força física do operário. O valor diário ou semanal da força de trabalho difere completamente do funcionamento diário ou semanal desta mesma força de trabalho; são duas coisas completamente distintas, como a ração consumida por um cavalo e o tempo em que este pode carregar o cavaleiro.” (p.83)


Vemos é a ilusão do trabalhador de, por exemplo, trabalhar 12 horas, e achar que está recebendo por todas estas horas trabalhada. Na verdade o trabalhador esta, durante este montante de horas, gerando lucro para o capitalista.
A força de trabalho do operário, vendida ao capitalista, incorpora-se a um produto que se vende no mercado por um valor superior a seu custo de produção. A diferença entre o valor final do produto e o custo de produção constitui a mais-valia, o excedente ou valor acrescentado pelo trabalho. O custo de produção é a soma do valor dos meios de produção (maquinaria e matérias-primas) e do valor da força de trabalho, este expresso em bens indispensáveis à subsistência do operário e sua família . A mais-valia, portanto, converte-se em lucro para o capitalista.
Marx distingue dois tipos de mais-valia, a absoluta e a relativa, que se definem pela maneira como são aumentadas. A mais-valia absoluta aumenta proporcionalmente ao aumento do número de horas da jornada de trabalho, conservando-se constante o salário. O valor produzido pelo trabalho nesse tempo adicional corresponde à mais-valia absoluta. Assim, quanto mais horas o operário trabalhar, maior será o lucro do capital, isto é, a mais-valia absoluta, e sua acumulação. A mais-valia relativa aumenta com o aumento da produtividade, com a racionalização do processo produtivo e com o aperfeiçoamento tecnológico.
A obtenção de mais-valia conduz à acumulação do capital expressa na concentração fabril e empresarial e no progresso tecnológico incorporado à maquinaria das grandes indústrias. O uso de máquinas cada vez mais produtivas elimina periodicamente parte da força de trabalho. Os operários dispensados engrossam o "exército industrial de reserva" (os desempregados) em situação de concorrência que favorece a redução dos salários e a pauperização da classe operária.
Nas páginas de número 85/6 o filósofo expõe que o capitalista não embolsa o lucro, propiciado pela mais-valia, na sua totalidade, tendo, pois, que dividir entre , a renda territorial, ou seja, permite ao proprietário da terra embolsar uma parte, como também uma segunda fica para o capitalista que empresta o dinheiro. Com isso, a renda territorial, o juro e o lucro industrial não mais são que nomes diferentes para exprimir as diferentes partes da mais-valia de uma mercadoria ou do trabalho não remunerado, que nela se materializa, e todos provêm por igual desta fonte e só desta fonte. Logo, máquina e matéria-prima não produzem lucro algum.
Marx, no sentido de orientar a luta salarial examina a dinâmica da disputa entre lucros capitalistas e salários dos trabalhadores, sob diversos cenários:
*Aumento da produtividade ou diminuição da produtividade do trabalho, variações que decorrem de tal ou qual força produtiva do trabalho seja empregada.
*Aumento do preço em dinheiro dos gêneros de primeira necessidade sem que haja variação do valor da força de trabalho do operário.
*Alongamento da jornada de trabalho.
*Influências das fases do ciclo econômico - de calma, de animação crescente, de prosperidade, de superprodução, de estagnação e crise - sobre os salários e a luta salarial.
Conclusão.
Temos que nos questionar, enquanto leitores ativos, ou seja, aqueles que pensam a obra, levantando questões e contra-argumentando.
“Salário, Preço e Lucro’’ revela um homem que não mais um trabalho livre, antes, tem que trabalhar para comprar produtos de primeira necessidade, mas não só isso, pois, num mercado onde encontramos uma segunda natureza, ou seja, tudo está pronto, somos antes encantados pelo caráter fantasmagórico, para usar o termo dado por Baudelaire, das mercadorias, levando-nos, quais ‘’fantasmas’’, a comprar de forma alienada, sem saber o que estamos fazendo, ou por que estamos comprando esta e não aquela mercadoria. Nos arriscamos aqui a dizer que se Adorno interpretou de nova maneira o Imperativo Categórico de Kant , na sociedade alienante do capitalismo, diferente do que concebia Descartes, não mais existimos por que pensamos, e sim porque compramos, ou seja, compro logo existo. Essa afirmação, ao olhar de um lingüista, pareceria de um caráter esdrúxulo, mero jogo de palavras (cacofonia). Entretanto, estamos trabalhando com conceitos neutros, de tal modo que se fazemos uso desta troca no cogito cartesiano, é antes para alertar sobre a condição do homem no regime capitalista, para que assim, como Marx expõe nas 5 últimas páginas de seu livro, “Salário, preço e lucro’’, ocorra uma luta entre o Capital e o trabalhador, pois, segundo o autor, á tarefa do trabalhador fazer isso.
Temos que entender que a tendência do capital fiscal não é elevar os salários e sim diminuí-lo, e que se gasta muito mais com matérias-primas e maquinaria, do que com o próprio trabalhador, e não é só isso, o capital destinado à estes dois fins, maquinas e matéria-prima, cresce muito mais rápido que o destinado aos trabalhadores.
A obrigação de um leitor atento é ainda desmentir os capitalistas, no exato momento em que estes pregam o falso argumento de que o aumento de salários gera inflação, porque, como podemos verificar com a leitura da obra, o salário tem que ser avaliado tendo em vista o grandioso lucro do capitalista.
Terminamos esta exposição com uma sugestão do próprio Marx aos trabalhadores, de que estes coloquem em sua bandeira: “Abolição do sistema de trabalho assalariado.” (p.99)
É isso!


Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta
Melancolia, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
[...]
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase
[...]
Crimes da terra, como perdoá-los?
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Drummond, C: ”Antologia poética”.

sábado, 11 de outubro de 2008

Aforismos Narcísicos

Tenho vivido cinquenta horas durante três dias de sua ausência.
Tenho visto Glauber Rocha e produzido teses - nunca lida: poeiras acadêmicas.
A vista só pode estar cansada quando a existência pesa menos que o mundo -assim não disse Zaratustra.
A corda-bamba é a emoção da possível morte.
A viagem mais longa tem como ponto um eu retorcido.
A imagem perfeita é do detrás do espelho.
A saudação mais humana é a que preza pelo caráter de angústia.
O café mais amargo também leva açucar.
A ferida narcísica é o que te ofereço.
Johnny Dias.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

GOTEIRA

Engraçado, meus lábios contraem-se inseguros. Veja aquela goteira que, há mais de uma semana, não se detêm.
Há sete manhãs, tardes, noites e madrugadas, parado eu aqui, nessa cadeira de madeira velha aveludada, fico a ver o som das gotas que tocam o fundo de um balde azul pálido de metal.
Sete baldes já foram necessários para suportar essas gotas tão finas que, aos poucos, transformam-se em cachoeiras se não contidas a tempo...
O orifício que permite a vazão dessas gotas é encontrado em um cano colado ao teto de uma parede de concreto já desgastado com os ponteiros, úmida.
A estrutura de cimento e areia, aos poucos, em decorrência dessa umidade, começa a exibir um bolor acinzentado e esverdeado - cor de dias chuvosos.
Se quiser, pode chegar mais perto para tocar a água que escorre pelo chão – sinta! O ambiente está encoberto, não é? Esse canto parece a dias chuvosos e invernais. Tudo é doente e frio...
Ainda existe uma cadeira ao meu lado sem ocupante. Estou pensando em lhe chamar para ficar comigo a refletir sobre as gotas aquosas. Se você começar a contar, em um minuto, terão saído daquele pequeno e estreito buraco, 44 gotas. O concreto da parede não tem coloração – é branco encardido. Está todo cicatrizado. Veja, eu posso com minhas unhas retirar a camada de uma fina tinta que se despedaça em segundos - camadas.
Está gelada a parede!
Eu queria dormir um pouco... só um pouquinho. Acontece que desde que percebi que neste canto existia esta goteira, fiquei preocupado se a goteira, aos poucos, não inundaria o local todo. Para evitar isso, eu fico acordado trocando os baldes - o cheio pelo vazio. É divertido. Só um pouco estafante. O som suave compensa a dor.
Uma coisa me preocupa: os baldes estão acabando.
Gustavo Pilizari

Glauber Rocha e o Desencantamento do Mundo.

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Sara -“Um homem não pode se dividir assim, a poesia e a política é muito para um único homem.” ...Paulo- “A poesia não têm sentido, as palavras são inúteis.”

...Paulo -“Quando eu voltei para o Eldorado não sei se antes ou depois, quando revi a paisagem imutável, a natureza, a população em sua impossível grandeza. Eu trazia uma forte amargura outra vez me perdia no fundo dos meus sentidos. Eu não acreditava no sonho, nem em mais nada. Apenas a carne me ardia e nela me encontrava.” Glauber Rocha (roteiro de terra em transe: Fala de Paulo e Sara, e o retorno de Paulo a Eldorado)

Apreciação da técnica.

No presente , pretendemos analisar o filme Terra em Transe, escrito e dirigido pelo cineasta baiano Glauber Rocha (1939-1981). Ao contrário da maioria das análises já feitas acerca desta obra, tencionamos dar maior ênfase à estética do filme que, a nosso juízo, ainda não foi suficientemente discutida e analisada.

Para isso recorremos, num primeiro passo, a visão de Sergio Faria Filho[1], com qual concordamos, além de acrescentarmos pontos e obras, quais o referido autor não levantou e nem desenvolveu, cabendo a nós, ao longo do texto que apresentaremos, a sua apresentação em determinados momentos, e em outros apenas a pontuação, como forma de complemento ao que fora fomentado por Faria Filho.

Terra em Transe foi filmado entre os anos de 1966 e 1967 no Brasil, retratando o cenário político da América Latina pré-ditaduras. Para retratar esta conturbação política, o diretor utilizou-se de uma narrativa extremamente complexa, pessoal e inovadora. É impressionante a evolução de Glauber de seu longa-metragem anterior (Deus e o Diabo na Terra do Sol, 1964) para este longa, principalmente em relação à direção: enquanto que a estética de Deus e o Diabo na Terra do Sol é uma fusão do cinema revolucionário de Sergei M. Eisenstein (o filme chega a possuir até uma espécie de tributo à antológica cena da Escadaria de Odessa da obra-prima do diretor, O Encouraçado Potemkin) e do Neo-Realismo Italiano (principalmente dos filmes de Luchino Visconti e Roberto Rossellini), em Terra em Transe há uma nova estética com elementos criados pelo próprio diretor, embora ainda contenha elementos das escolas italianas e soviéticas. Sem dúvida, há um sensível amadurecimento entre essas duas obras.

A narrativa de Terra em Transe é o meio pelo qual o artista transporta suas idéias político-sociais. Podemos destacar como as principais características desta narrativa revolucionária:

•Citamos aqui a Ismail Xavier, na sua obra, “Alegorias do subdesenvolvimento”, onde o critico faz referencia ao caráter teleológico da película de Rocha, para usar suas palavras: “Meu universo é o das narrativas, terreno em que a teleologia [...] se afirma na medida em que a sucessão dos fatos ganha sentido a partir de um ponto de desenlace que define cada momento anterior como etapa necessária para se atingir o Telos( fim).” (Xavier, 1993: 12) Com isso, notamos a afirmação que o critico faz uma relação entre o microcosmo ficcional e o microcosmo social. O que nos faz lembrar do afã de Glauber, quando coloca os personagens virados de frente para a câmera, de conseguir realizar o intento de desencadear a imaginação do espectador, ou, mais ainda propor para o mesmo que pegue em armas e faça uma revolução, esta tomando uma conotação anárquica- e sabemos ser possível só num plano metafísico, daí o caráter surreal do final do filme


• O estabelecimento da montagem narrativa ocorre como no jornalismo. Isto está visivelmente presente no longa, porque o diretor é também um jornalista, o personagem principal é um jornalista, o tema é jornalístico e o filme é praticamente uma reportagem, mesmo que fictícia.

• A Descontinuidade presente na trama, assim como ocorre em A Greve (1925), também dirigido por Eisenstein, Terra em Transe primeiro expõe o fato para só depois expor quais as causas desse fato, ou seja: o início é o fim do filme. A quebra da narrativa linear é apenas uma das inúmeras provas que em Terra em Transe, Glauber ainda não se desvinculou de sua influência européia, o que viria a ocorrer apenas no final de sua carreira. É sempre bom ressaltar que a descontinuidade da narrativa do filme não tem a intenção de confundir o público ou de fazer do filme uma grande charada, como infelizmente acontece com certa freqüência no cinema atual. Ao utilizar-se da quebra da narrativa linear, Glauber tão somente deseja forçar o espectador a refletir sobre o que está sendo exposto no filme.


• É notório que não há um padrão ou uma lógica na narrativa. Dessa forma, Glauber Rocha obriga o espectador a pensar acerca de sua obra. Ao contrário do que ocorre com a maioria dos cineastas tradicionais, Glauber não consegue, nem tampouco deseja, controlar a interpretação de sua obra. O que ele realmente deseja é causar um desconforto no público de maneira tal que este não consiga sair do cinema sem refletir acerca do que viu na tela. Conseqüentemente, é impossível haver qualquer adestramento ideológico, prática extremamente comum por parte de vários governos totalitários em todo o mundo, bem como por parte de grandes produtoras ou empresas que desejam adestrar o público, fazendo com que este aceite uma idéia sem qualquer discussão acerca de sua natureza. Um exemplo clássico deste adestramento ideológico seria o Realismo Socialista perpetrado por Stalin, assim como os filmes de ação hollywoodianos da década de oitenta, notoriamente ufanista.

•O plano sonoro do filme apresenta variabilidade de estilos musicais, que começa com samba, perpassa por cantos afros, engendra uma cena com um fundo de ópera, e coroa o momento de entrega à sensualidade do personagem Paulo em volto pela sonoridade do jazz. Em vários momentos utiliza-se de sons sobrepostos, os quais criam uma dissonância levantando um caráter múltiplo de sentidos, onde cada cena revela o seu.


• Com relação à Dinâmica, dificilmente vemos a câmera parada no filme. Glauber não se cansa de movimentar a câmera e, ao mesmo tempo, utiliza-se de uma quantidade impressionante de cortes. Um ótimo exemplo da dinâmica de sua narrativa é a cena em que, no “início” do filme, a câmera filma um grupo de pessoas conversando. O que impressiona nesta cena é que em vez de deixar a câmera estática, Glauber filma a conversa fazendo círculos contínuos e incessantes nos atores, causando um estranhamento no público. Outro ótimo exemplo é a maneira com que o diretor filma um diálogo com atores em movimento na película. Ao contrário da forma convencional, o cineasta resolve filmá-los fazendo vários cortes sem parar sua seqüência, sendo que estes cortes, muitas vezes, levam a câmera para um lugar bem distante de onde esta estava antes do corte, dando a dinamicidade que o filme tanto precisa.
No que tange o roteiro, o filme é um retrato de toda a América Latina (não apenas o Brasil), razão pela qual Glauber resolveu passar o filme num país fictício chamado Eldorado, decisão esta extremamente válida. Caso o filme tivesse sido passado no Brasil, daria um caráter nacional à obra, ofuscando o resto do continente. O ponto é que embora existam diversos países em toda a América Latina, os problemas político-sociais são sempre os mesmos, modificando-se apenas sua intensidade.
A importância de Terra em Transe para o cinema brasileiro é imensurável, sendo este filme o cerne do movimento cinematográfico brasileiro conhecido como Cinema Novo. Este movimento propunha um novo cinema, sendo fiel à realidade social de nosso país, denunciando toda a pobreza e miséria que a maioria da população vive. Pela primeira vez o “verdadeiro” Brasil invadia as telas do cinema.

•A câmera não cessa, ou seja, assume um caráter de movimento circular revelando elipses temporais e de espaços. Mostrando ainda, o que aparentemente pode ser tomado como imprevisto como algo deliberadamente previsto. Vale lembrar a espantosa exibição na tela de um poema de Mário Faustino, o que mais uma vez reforça o que estamos chamando de caráter jornalístico.

A caráter de curiosidade poderíamos estabelecer um paralelo entre Glauber e Godard, tal paralelo é balizado no fato de que ambos apresentam o seguinte esquema: começo, meio, e fim- não necessariamente nesta ordem.

Apreciação Filosófica.

“Terra em Transe” e o Desencantamento do mundo.

Max Weber pode ser considerado um dos autores que influenciaram diretamente a chamada “Escola de Frankfurt” como um todo. É a ele que temos que dar o crédito do uso, pela primeira vez, do termo desencantamento, como o encararemos aqui. Entretanto, optamos nesse texto por apontar a influência exercida por um conceito de Weber sobre a obra em comum de Horkheimer e Adorno, “Dialética do Esclarecimento”, sendo esta tomada como baliza para o paralelo que traçaremos aqui.

Tereza Ventura em seu livro, “A poética polytica [sic] de Glauber Rocha”, levanta a questão política brasileira, expressa pelo oposto, qual seja, de um lado a população – “regida pelas musas e cantos míticos revela uma herança cultural distinta do racionalismo burguês” (VENTURA, 2000:222). Do outro lado, o poeta “como consciência possível para o homem do Terceiro Mundo” (ibidem).

Tal afirmação nos remete, de chofre, a cena do filme no qual o povo é chamado para falar, e o que se faz notar é, no fundo, um vazio ensurdecedor, pois, seria difícil para este homem camponês “cuja vida é regida pelas musas e cantos míticos”, ser aceito pelo racionalismo burguês ocidental, ou seja, o mundo do dominado e do dominador, do índio e do branco, sempre serão geradores de conflito, opostos, para lembrar o uso corrente destes por parte de Glauber, revelando a emancipação, e com isso nos remetemos de chofre ao fim da película, somente por meio da morte do ditador, e não menos do Eldorado, que toma à primeira cena, e que dá desfecho a película – como um fim nunca encontrado.

Eis que surge também a figura do poeta, que, ao lado da população, é a representação do desencantamento, quer seja, pela perda do sentido ou desmagificação, pois, por mais que este último recorra ao mito, eles são de ordem sacramental, e, em sua maioria, católica.

Pierucci em “O desencantamento do mundo” é pontual:

“A ação orientada segundo representações mágicas, por exemplo, tem muitas vezes um caráter subjetivamente muito mais racional com relação a fins do que qualquer comportamento ‘religioso’ não mágico, posto que a religiosidade, à medida que avança o desencantamento do mundo, se vê obrigada a aceitar referências de sentido cada vez mais subjetivamente irracionais com relação a fins” (PIERUCCI, S/D:47) [grifo no original].

Notamos assim, que há um grito de desespero da parte tanto do anti-herói poeta como da parte do povo. E um abismo entre um e outro. O primeiro diz que, como não agüenta o mundo, precisa abrir caminhos, mas, logo depois, acrescenta: 'nem que seja para abandoná-los', assumindo compromisso menos com resultados e mais com a luta por eles. Já o povo, se ora é representado por quem mostra disposição para reagir a desmandos, ora é definido em voice-over como fraco e obediente, sempre beijando os pés de quem carrega armas ou cruzes, o coronelismo, de todas as instâncias, e a religião. No lado oposto dos dois, há a figura de Paulo Autran, para quem o povo no poder é o descalabro.

Em Terra e Transe a força divina da palavra conduzia o universo cultural do mundo arcaico, em que a poesia era o eixo da vida espiritual dos povos. Essa dimensão arquetípica da cultura arcaica, anterior à escrita e mítica da cultura da história, é entendida por Glauber como uma potencialidade dos povos do Terceiro Mundo. Como se o poeta pudesse romper com a cronologia constituída pela dominação colonial e desfrutar de um tempo ausente na cultura racional e cristã do colonizador.

Ele reconhece a tragédia da impossibilidade desse retorno, a partir do apelo ao retorno da divindade salvadora, aponta VENTURA. (2000:223).

Estabelecendo um paralelo, recorremos mais um a Pierucci:

“E além do mais, a religiosa devia ser o mais possível despojada do caráter puramente mágico ou sacramental dos meios da graça. Pois estes sempre desvalorizam a ação do mundo como tendo significado religioso na melhor das hipóteses relativo e ligam a decisão sobre a salvação ao êxito de processos racionais não cotidianos. As duas condições, desencantamento do mundo e deslocamento da via de salvação, da ‘fuga do mundo’ contemplativa para a ‘transformação do mundo’ ascético-ativa, só foram plenamente alcançadas – à exceção de algumas pequenas seitas racionalistas encontradiças do protestantismo ascético no Ocidente” (PIERUCCI, S/D: 48). [grifo no original]

É inevitável falarmos do progresso, da tecnologia e os sistemas políticos das grandes nações do ocidente, os quais oprimem a evolução da civilização do Terceiro Mundo, na medida em que submetem ao colonizado um processo obrigatório de dependência e assimilação de valores culturais conflitantes com a vocação nativa.

“Quanto mais o intelectualismo repele a crença na magia, e com isso os processos do mundo ficam ‘desencantados’, perdem seu sentido mágico e doravante apenas são e acontecem, mas não significam mais nada, tanto mais urgente resulta a exigência, em relação ao mundo e à conduta de vida como um todo, de que sejam postos em uma ordem significativa e plena de sentido” (ibidem).

Terra em Transe denuncia a fragmentação dos valores ético-políticos, seja nas elites, seja nas massas, e a ausência de um processo revolucionário. O transe aponta a idéia de que não existe uma realidade acabada, que esta não opera no registro de uma racionalidade histórica, temporal e intelectual como resultado de uma razão conservadora alheia à “especificidade complexa e ambígua” do Terceiro Mundo.

O filme denuncia a idealização romântica do “povo” e a pseudopedagogia teórica e abstrata das esquerdas, o dilema do intelectual entre a descrença na revolução, a conversão à militância e o isolamento diante do povo.

O Brasil de Terra em Transe não efetiva um modelo emancipatório de cidadania política. No terreno da modernização técnica o filme anuncia um imaginário arcaico que se materializa no ritual carnavalizado ou na ignorância do processo político. Tratava-se para Glauber de mostrar a cultura brasileira em sua ambigüidade, tencionando as antinomias: erudito/ popular; reacionário/revolucionário; alienação/ engajamento; nacional/ internacional, arcaico/moderno. A ambição era desmistificar essas polaridades e apresentá-las como um campo de invenção positivo no imaginário brasileiro. Criticava-se a cultura das elites que recusavam o cafona e cultivavam o bom-gosto.

“Muitos dos antigos deuses, desencantados e doravante sob a forma de potências impessoais, emergem de seus túmulos, esforçam-se por ganhar poder sobre nossas vidas e novamente recomeçam sua eterna luta uns contra os outros. Mas o que se torna assim tão duro para o homem moderno, e mais duro ainda para as jovens gerações, é o estar à luta desse dia-a-dia. Toda busca de experiência provém dessa fraqueza. Pois fraqueza é: não ser capaz de olhar de frente, em seu severo semblante, o destino do [nosso] tempo” (ibidem, p.52). [grifo no original].

“Os senhores, que antes me chamavam de gênio, hoje me chamam de burro, devolvo a genialidade e burrice. Sou um intelectual subdesenvolvido como os senhores, mas diante do cinema e da vida tenho, pelo menos, a coragem de proclamar a minha complexidade (...)”.

Glauber Rocha (resposta para a hostilidade contra o filme e acusações de sua falta de qualidade artística).

Colaboradores